Recado para o futuro de Brasília e Inverdades do PPCub

Embora os representantes da sociedade civil tenham conseguido reformular o texto do Plano de Preservação do Conjunto Urbanístico de Brasília, o documento que será enviado à Câmara Legislativa abre brechas para alterações que afetam a área tombada.

O Touring Clube do Brasil, próximo à Rodoviária: no plano aprovado mantém o prédio segundo a concepção original, mas abre brechas para alterações.

Após três semanas de votações suspensas, debates acalorados e muitas polêmicas, o Plano de Preservação do Conjunto Urbanístico de Brasília (PPCub), finalmente, teve a análise concluída pelo Conselho de Planejamento Urbano e Territorial (Conplan). Ontem, após 10 horas de discussões e reformulações no texto, os conselheiros aprovaram o projeto por maioria. Agora, a responsabilidade será dos deputados distritais. Representantes da sociedade civil que participaram da votação admitem que o projeto teve avanços, mas ainda não configura um plano ideal de preservação da área tombada.


Desde que a discussão sobre o PPCub ganhou contornos mais definidos, a maior polêmica para arquitetos e acadêmicos foi a forma como a proposta era apreciada. Eles reclamavam que o projeto foi pouco discutido, votado às pressas e sem a devida participação da comunidade. No entanto, os esforços da representação da sociedade civil trouxeram algumas vitórias. Uma delas foi a ampliação do número de cadeiras para os setores organizados da sociedade na composição do Grupo Técnico de Acompanhamento do Conjunto Urbanístico de Brasília (GTCub), previsto no PPCub.

O GTCub acompanhará e fiscalizará a aplicação das normas para o conjunto urbanístico, além de analisar a sincronia de novos projetos e o plano de preservação. A proposta inicial era manter a divisão dos integrantes nos mesmos moldes do Conplan, com paridade entre governo e entidades da sociedade indicadas pelo Executivo. Nas discussões, prevaleceu a proposta do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB-DF), que elevou de 10 para 15 o número de assentos do GT, que serão ocupados por cinco prepostos do governo, sete da comunidade, dois do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e um da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). “Isso é um avanço no projeto, principalmente para a formação de uma gestão compartilhada. De certa forma, alguns pontos ainda permanecem em impasse e vamos continuar a discussão na Câmara”, afirmou o presidente do IAB-DF, Thiago de Andrade. 

Para ele, outras alterações no texto aprovado são resultado da atuação de entidades não governamentais, como a aplicação do gabarito das 900 Norte para a 901 Norte, que chegou a ser cotada para ter prédios de até 45 metros, mas somente poderão ter até 12,5m. Outro ponto revertido no projeto apreciado pelo Conplan são as previsões de potencial construtivo nos terrenos da orla do Lago Paranoá no Setor de Clubes Sul. Representantes da construção civil queiram aumentar para 80% a capacidade da área edificável, mas o índice se manteve em 60%, como estabelece a escala bucólica descrita por Lucio Costa. 

Mesmo com os avanços, texto deixa brechas para modificações em prédios tombados, como o Touring Clube, uma propriedade particular. O documento não veda modificações no edifício projetado por Oscar Niemeyer. Estipula apenas que, para eventuais mudanças, é preciso que a proposta passe pelo crivo de entidades de preservação do DF e do governo federal. O mesmo é previsto para o histórico hotel Brasília Palace, o primeiro da cidade. 

“Já estão prevendo possibilidade de mudanças. Definitivamente, este não é um plano de preservação, a Sedhab (Secretaria de Habitação) não é o órgão adequado para proteger a cidade e o Conplan não é a instância apropriada para aprovar questões do conjunto urbanístico”, criticou Vera Ramos, diretora de Patrimônio Cultural do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal (IHGDF). Para ela, o texto formulado é prolixo e obscuro quanto ao plano de preservação, o que abre espaço para entendimentos variados. 

Para o secretário de Habitação, Geraldo Magela, novas observações poderão ser feitas na Câmara Legislativa. Ele destaca a aprovação do GTCub e a forma como atuará. Ele está confiante na apreciação do projeto de lei pela Câmara ainda neste ano e se diz satisfeito com PPCub aprovado. O secretário citou, inclusive, o respaldo da presidente do Iphan nacional, Jurema Machado. “É o melhor modelo que conseguimos construir. Temos que colocá-lo em prática. Criticaram o projeto sem entender do que se tratava, por má intenção e por questões políticas”, afirmou. 

Hegemonia governamental

O Conplan tem 27 conselheiros, sendo 13 deles representantes do governo local, além do governador. A formação, inclusive, foi questionada judicialmente, pelo Ministério Público, em 2012. A Justiça também enxergou irregularidades na indicação dos membros e anulou a formação do colegiado, que voltou a ser formado por decreto do governador.

Vagas subterrâneas liberadas

Texto que vai seguir para a Câmara Legislativa prevê espaço para carros sob o gramado da Esplanada dos Ministérios, que precisará ser mantido. Além disso, poderão ser criados estacionamentos no subsolo da W3 Sul

ARIADNE SAKKIS e CAMILA COSTA
 
PPCub tenta corrigir a falta de vagas para veículos na W3 Sul e autoriza a implantação de garagens ao longo da avenida, exceto na 502, 507 e 508

Se aprovado pelos deputados distritais tal como será encaminhado à Câmara Legislativa, o Plano de Preservação do Conjunto Urbanístico (PPCub) vai permitir a escavação do subterrâneo da Esplanada dos Ministérios para a criação de garagens. O estímulo ao transporte individual não para aí. O subsolo das quadras 500 da W3 Sul também pode ser explorado por estacionamentos rotativos privados. 

Pelo texto encaminhado pelo colegiado, a condição para explorar o subsolo do platô ministerial é “manter a integridade do canteiro central gramado” e reduzir as vagas em superfície. A medida havia sido retirada do texto discutido pelo grupo de trabalho, que foi formado no início do ano a pedido da Câmara Legislativa. Mas ressurgiu no material revisto pelo Conplan e acabou ratificado pelas planilhas técnicas. Além do gramado central, o PPCub autoriza garagens nos anexos dos ministérios. Pelas projeções iniciais, elas comportariam 10 mil carros em 340 mil m².

Desde que a ideia surgiu pela primeira vez, como uma proposição do Executivo, as garagens foram alvo de críticas de especialistas em transporte. A visão é que, em vez de incentivar e melhorar as condições de mobilidade urbana e circulação na Esplanada, a medida será um convite ao transporte individual. 

Com exceção da 502, 507 e 508 Sul, o PPCub autoriza o uso subterrâneo das demais quadras 500 da Asa Sul para estacionamentos rotativos, destinados à exploração da iniciativa privada. Originalmente, a planilha descrevia a medida como uma possibilidade, dentro do processo de revitalização da avenida que um dia foi referência para o comércio da cidade. A nova redação estabelece que as vagas devem, obrigatoriamente, ser criadas no subsolo. 

Novos bairros 
Apesar de vários artigos terem sido retificados em função de mudanças nas planilhas, a previsão de dois novos bairros atrás da antiga Rodoferroviária não saiu do texto. O inciso 5 do Artigo 31 continua fazendo menção ao Parque Ferroviário de Brasília e ao Setor Militar Complementar. No entanto, as planilhas não trazem parâmetros. Os bairros ficam fora da poligonal tombada, mas integram a área de entorno, por isso, para existir, têm de ser previstos no PPCub. 

Sem prazo de transição

O conselheiro suplente do Sindicato da Indústria da Construção Civil do DF (Sinduscon), Adalberto Valadão Jr., e o titular da Associação de Empresas do Mercado Imobiliário do DF (Ademi-DF), Paulo Muniz, não conseguiram garantir um prazo de 3 anos de transição, após a edição da lei do PPCub, para a adequação dos projetos de novos empreendimentos às regras da área protegida. Pelo Art. 251 do PPCub, os projetos protocolados nas administrações regionais antes da data de publicação da lei permanecerão submetidos às normas vigentes até então. “Seria justo e coerente para dar uma margem mínima para que os proprietários possam desenvolver os projetos e submetê-los à aprovação com as alterações”, argumentou Valadão Jr. 

A proposta foi criticada pela conselheira suplente da UnB, Maria do Carmo, que temeu a renovação contínua de prazos até o descumprimento total da lei, e também pelo titular do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB), Thiago de Andrade. “Criaria um problema, que é ficar com duas legislações em vigor e também a possibilidade de aprovações de projetos fantasmas para, daqui a 5, 12 anos, quando alguém quiser empreender, entrar com projeto de retificação e não de alteração de projeto”, agumentou o arquiteto. O secretário de Habitação, Geraldo Magela, propôs um prazo de adaptação de um ano após a publicação do PPCub, mas em votação, a maioria do colegiado refutou um período de carência. 

CONCEIÇÃO FREITAS Correio Braziliense 

Crônica da Cidade: Inverdades do PPCub

Reproduzo, de modo resumido, documento preparado pela arquiteta Vera Ramos, do Instituto Histórico e Geográfico, sobre os mitos que envolvem o PPCub. 

 1 — Brasília ainda não tem um plano de preservação.

 Ao contrário, Brasília já nasceu com um plano de preservação. A concepção da cidade foi explicitada no Relatório do Plano Piloto de Brasília. Sendo assim, cabe ao PPCub respeitar e detalhar a legislação de proteção, corrigir desvirtuamentos e resgatar conceitos e valores.

2 — O tombamento engessa.

Tombamento significa reconhecimento de valor. A preservação não exclui o desenvolvimento, mas impõe certos limites para não descaracterizar o plano urbanístico, que está protegido em três instâncias: tombamento distrital, tombamento federal e inscrição na lista do Patrimônio Mundial da Unesco. O tombamento do conjunto urbanístico de Brasília é diferente (dos demais tombamentos): tem caráter urbanístico e é muito mais flexível que o tombamento arquitetônico tradicional.

3 — O PPCub foi o projeto mais discutido com a sociedade.

Nas audiências públicas, as informações sobre o conteúdo do PPCub foram genéricas e limitadas a questões pontuais, trazidas pelos presentes. O PPCub é um documento complexo, prolixo e polêmico composto pelo projeto de lei, 72 planilhas e 10 mapas anexos. 

4 — A Unesco exige que o PPCub seja aprovado.

A Unesco não exige que o PPCub seja aprovado, pois, da forma como está, não atende e até contraria suas recomendações. A missão da Unesco que esteve em Brasília em 2012 verificou uma série de problemas no PPCub e apresentou recomendações, incluindo sua revisão entre as quais:

 “Assegurar que as características originais, o espírito e a escala do projeto original desenhado por Lucio Costa, que garantiram a inscrição na lista do patrimônio mundial são (sejam) contemplados no Plano de Preservação do Conjunto Urbanístico de Brasília (PPCub).

Aplicar legislação para proibir a construção de novos edifícios em áreas non aedificandi definidas pelo Plano Piloto, e para manter as características de cada escala urbana.

Proibir inteiramente a construção de edifícios residenciais na orla do lago.

Garantir acesso público ilimitado aos espaços naturais e verdades da orla do lago. 

(…) Deve haver uma proposta de normas claras que não deixem espaço para interpretações subjetivas sobre questões essenciais para a conservação e a preservação do Plano Piloto e suas escalas (bucólica, monumental, residencial e gregária), particularmente em relação às formas e índices de ocupação do solo, tipos de uso, volumes e alturas permitidas.” 

Recado para o futuro de Brasília

Pretendemos contribuir para o debate público da cidade, sem qualquer motivação política ou eleitoral, porque entendemos que o tema da preservação de Brasília demanda informações mais claras sobre suas polêmicas e, principalmente, enseja reflexões e proposições responsáveis sobre o futuro da metrópole.

O planejamento democrático, preconizado pela Lei Orgânica do Distrito Federal e pelo Estatuto da Cidade, demanda debate informado, com método, espaço e tempos adequados para que o exercício da crítica seja livre e produtivo. É possível que “nunca na história de Brasília” um plano tenha sido tão debatido quanto o PPCub, mas é provável que nunca um plano tenha sido tão necessário de ser debatido quanto o PPCub.

Quando se trata de Brasília, a polêmica é permanente. Além de interesse e relevância internacionais, a cidade tem massa crítica — vide o debate em torno da Praça da Soberania, de Oscar Niemeyer, que, por meio de rica celeuma, com ampla participação da sociedade, gerou recuo da proposta. 

No que tange ao PPCub, evidenciam-se dois dilemas básicos para o planejamento e a gestão urbana. Primeiro, a necessidade de avançarmos em novos métodos e modelos de debates e audiências públicas, pois trata-se de assunto complexo, de linguagem técnica intrincada, cheio de anexos, mapas e planilhas, onde constam detalhes decisivos como os usos e formas de ocupação e construção nas áreas públicas e privadas. A cidade é objeto de múltiplos interesses e desejos, mas o modelo tradicional do auditório que assiste a longa apresentação técnica, sucedida da fila de livres intervenções, tem propiciado menos um debate informado, qualificado, com consequências no conteúdo, e mais um verdadeiro inventário de demandas, um varejo de interesses particulares.

Segundo, a necessidade de recriar espaços permanentes de acompanhamento e debate propositivo do planejamento e gestão. Os conselhos de planejamento urbano em funcionamento no Brasil, com diversas composições, têm demonstrado que não podem ser limitados a fóruns para o governo local ouvir a sociedade e legitimar suas decisões. Sem pretender substituir os legislativos, mas com maioria da sociedade sobre o governo, podem se constituir em espaços de democracia urbana direta, como a antiga Ágora grega, praça onde se pratica a política, ou seja, se decide o destino da pólis. No caso de Brasília, concebida por Lucio Costa como urbis e civitas. 

O modelo de gestão compartilhada entre Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), GDF e sociedade para preservação do patrimônio em discussão no PPCub tem merecido pouco destaque e necessita de aprofundamento. Essa é a maior oportunidade de conseguirmos, não a preservação por escrito, em lei, mas realizada e praticada cotidianamente. Entendemos que o modelo e a composição do Conselho de Planejamento Territorial e Urbano do Distrito Federal (Conplan) merecem maior debate público, como sugerem questionamentos do Ministério Público. 

Cabe esclarecer que, nas outras duas ocasiões em que o PPCub foi aprovado no Conplan, o foi com o voto contrário dos representantes de entidades técnicas, acadêmicas e profissionais, como Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB), Universidade de Brasília (UnB) e Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU), expressando suas críticas em voto separado nas atas do conselho. 

Não obstante, o governador, diante das críticas públicas e em prol da aprovação do projeto de lei, anunciou em dezembro a retirada de vários artigos polêmicos. Dentre eles, a alteração de uso no caso da 901 Norte, a implantação da quadra 500 do Sudoeste, a criação de lotes no Eixo Monumental Oeste e novo bairro atrás da Rodoferroviária, além da concessão de áreas destinadas a escolas em superquadras e da transformação de uso para hotéis na orla do Lago Paranoá. 

Na Câmara Legislativa do DF (CLDF), no início do ano, foi constituído grupo de trabalho de revisão técnica do PPCub com o Iphan, o GDF e assessores legislativos, para o qual foram convidados representantes do IAB-DF, do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal e da UnB. Ao ser retomado em março, após período suspenso por decisão judicial quanto à sua composição e representatividade, o Conplan volta com aprovação do PPCub, sem que aquele grupo concluísse o trabalho. E, no varejo fragmentário apresentado, as propostas polêmicas são recolocadas no PPCub junto a outras, como a garagem subterrânea na Esplanada dos Ministérios. 

Enfim, entendemos que esse processo truncado e açodado pode transformar o PPCub não só em ameaça à preservação, mas em oportunidade perdida para o planejamento e gestão. Especialmente em vista da necessidade de construir um instrumento duradouro para a preservação do Conjunto Urbanístico de Brasília em consonância com uma perspectiva de planejamento e gestão metropolitana da cidade que integre o PPCub à Lei de Uso e Ocupação do Solo (Luos), ao Plano Diretor de Ordenamento Territorial (Pdot) e ao Plano Diretor de Transporte Urbano e Mobilidade do Distrito Federal e Entorno (PDTU). 
Afinal, como reconheceu o próprio criador maravilhado, essa cidade, ao crescer, foi tomada pelos brasileiros e ganhou vida própria — não é uma flor de estufa a ser preservada numa redoma de vidro.

BENNY SCHVARSBERG
Arquiteto e urbanista, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília, conselheiro do 
Conselho de Planejamento Territorial e Urbano do Distrito Federal (Conplan)

THIAGO DE ANDRADE
Arquiteto e urbanista, presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil, Departamento Distrito Federal, e conselheiro do Conplan.
Fonte: CAMILA COSTA e ARIADNE SAKKIS Correio Braziliense - 28/03/2014

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