Dizendo-se abandonada, a ex-chefe do escritório da Presidência da
República queria ajuda — e conseguiu.
A discrição nunca foi uma característica da personalidade da ex-chefe
do gabinete da Presidência da República em São Paulo Rosemary Noronha. Quando
servia ao ex-presidente Lula em Brasília, ela era temida. Em nome da intimidade
com o “chefe”, como às vezes também se referia a ele, Rose fazia valer suas
vontades mesmo que isso significasse afrontar superiores ou humilhar
subordinados. Nos eventos palacianos, a assessora dos cabelos vermelhos e dos
vestidos e óculos sempre exuberantes colecionou tantos inimigos — a primeira-dama
não a suportava — que acabou sendo transferida para São Paulo. Mas caiu para
cima. Encarregada de comandar o gabinete de Lula de 2009 a 2012, Rose viveu
dias de soberana e reinou até ser apanhada pela Polícia Federal ajudando uma
quadrilha que vendia facilidades no governo. Ela usava a intimidade que tinha
com Lula para abrir as portas de gabinetes restritos na Esplanada. Em troca, recebia
pequenos agrados, inclusive em dinheiro. Foi demitida, banida do serviço
público e indiciada por crimes de formação de quadrilha e corrupção. Um ano e
meio após esse turbilhão de desgraças, no entanto, a fase ruim parece ter
ficado no passado. Para que isso acontecesse, porém, Rosemary chegou ao extremo
de ameaçar envolver o governo no escândalo...
Em 2013, no auge das investigações, quando ainda lutava para provar sua
inocência, a ex-secretária Rosemary procurou ajuda entre os antigos
companheiros do PT — inclusive Lula, o mais íntimo deles. Desempregada,
precisando de dinheiro para pagar bons advogados e com medo da prisão, ela
desconfiou que seria abandonada. Lula não atendia suas ligações. O ex-ministro
José Dirceu, às vésperas da fase final do julgamento do mensalão, estava
empenhado em salvar a própria pele e disse que não podia fazer nada. No Palácio
do Planalto, a ordem era aprofundar as investigações. Em busca de amparo, Rose
concluiu que a única maneira de chamar a atenção dos antigos parceiros era
ameaçar envolver figuras importantes do governo no escândalo. Mensagens de
celular trocadas pela ex-secretária com pessoas próximas mostram como foi
tramada a reação. Magoada com o PT por ter permitido que a Casa Civil
aprofundasse as investigações sobre suas traficâncias, Rose destila ódio contra
a então ministra Gleisi Hoffmann. Em uma conversa com um amigo, em abril do ano
passado, desabafa: “Tão chamando a ministra da Casa Civil de Judas!!! Ela bem
que merece!!!”. O interlocutor assente: “Ela vazou a porcaria toda. Vamos em
frente”. Rose acreditava que o próprio Palácio do Planalto estava por trás das
revelações sobre o desfecho da sindicância — “a porcaria toda” — que apontava,
entre outras irregularidades, o seu enriquecimento ilícito no cargo.
Com o fundo do poço cada vez mais próximo, Rosemary decidiu arrastar
para dentro do escândalo figuras centrais do Planalto e, se possível, a própria
presidente Dilma Rousseff. A estratégia consistia em constranger os antigos
colegas de governo pressionando-os a depor no processo que tramitava na
Controladoria-Geral da União. “Quero colocar o Beto e a Erenice Guerra”, diz
Rose em uma mensagem. “Você quer estremecer o chão deles?”, questiona o
interlocutor. “Sim”, confirma Rose. “Porque vai bombar. Gilberto Carvalho
também?”, indaga. “O.k.”, devolve ela. As autoridades que deveriam “estremecer”
não foram escolhidas por acaso. Atual chefe de gabinete da presidente Dilma
Rousseff, Beto Vasconcelos era na ocasião o número 2 da Casa Civil. Ao lado da
ex-ministra Erenice Guerra, ele servira a Dilma no Planalto durante anos. Rose
os conhecia como a palma da mão e sabia que eles tinham plena consciência do
seu temperamento explosivo. A conclusão da conversa no celular, resumida pelo
interlocutor, revela as reais intenções da ex-secretária: “Vai rolar muito
stress... Vão bater na porta da Dilma. Vão ficar assustados”.
O plano embutia um segundo objetivo. Rosemary também queria se
reaproximar de um ex-amigo em especial. Ao tentar “estremecer” o chão de
Gilberto Carvalho, o ministro da Secretaria-Geral da Presidência e homem de
confiança de Lula, Rose tinha um propósito bem específico. Ela queria
restabelecer as suas ligações com “Deus”, como a ex-secretária costuma se
referir ao ex-presidente Lula. Em outra troca de mensagens de celular, um
interlocutor diz a Rose que, com a indicação das testemunhas — Gilberto
Carvalho, Beto Vasconcelos e Erenice Guerra — no processo da CGU, “o momento é
oportuno para aproximação com Deus...”. Mas a ex-protegida de Lula se mostra cética
e insatisfeita. “Vai ser difícil. Ele está com muitas viagens. Não posso
depender dele”, diz Rose. Não se sabe exatamente o que aconteceu a partir daí,
mas a estratégia funcionou. Um dos homens mais próximos a “Deus”, Paulo
Okamotto, presidente do Instituto Lula, cuidou pessoalmente de algumas
necessidades mais imediatas da família de Rosemary durante o processo. Além de
conseguir ajuda para bancar um exército de quase quarenta juristas das melhores
e mais caras bancas de advocacia do país, a ex-secretária reformou a cobertura
onde mora em São Paulo e conseguiu concretizar o antigo projeto de ingressar no
mundo dos negócios.
Rosemary comprou uma franquia da rede de escolas de inglês Red Balloon.
Para evitar problemas com a ficha na polícia, o negócio foi colocado no nome
das filhas Meline e Mirelle e do ex-marido José Cláudio Noronha. A estratégia
para despistar as autoridades daria certo não fosse por um fato. A polícia já
havia apreendido em 2012, na casa de Rose, todo o planejamento para aquisição
da franquia. Os documentos mostravam que o investimento ficaria a cargo da
quadrilha que vendia influência no governo. Na época, a instalação da escola
foi orçada em 690 000 reais — padrão semelhante aos valores praticados
atualmente no mercado —, dinheiro que Rosemary e seus familiares não possuíam.
Como, então, a família que informava ter um patrimônio modesto conseguiu reunir
os recursos? Procurada por VEJA, Meline Torres, responsável pela administração
da escola, informou que todos os investimentos foram realizados a partir de
“economias”. “Eu trabalhei muito durante a minha vida (Meline tem 29 anos).
Trabalho desde os 18 anos com registro em carteira e tenho poupança. Meu pai
também está me ajudando com recursos dele, aliás, do trabalho de uma vida”,
explicou. Rosemary não quis se pronunciar.
Fonte: ROBSON BONIN - revista Veja / Portal Gama Livre - 18/05/2014
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